sexta-feira, 30 de março de 2012

A vivência dinâmica entre o simples e o complexo


Quando fui convidado para dar a Aula Magna do início do primeiro semestre letivo de 2012 na Escola de Pastores, em Niterói, logo me veio à cabeça o tema da simplicidade do Evangelho. Ultimamente me incomoda a quantidade de adereços teológicos pendurados no cristianismo de hoje. Não que eles sejam novidade ou algo recente. Ao contrário, são tão antigos quanto a igreja. O que mudou foi a minha falta de paciência, de tolerância e de disposição para fingir que estou de acordo com a carga de complexidade posta sobre a vida cristã por conta dos vários sistemas teológicos vigentes.

Minha atual convicção é a de que Deus é simples e nós o complicamos. Quer dizer, Deus seria um ser mais complexo do que o ser humano pelo fato de ser o criador infinito, porém, parece que ele decide simplificar as coisas para poder caber em nossas cabeças. Não satisfeitos, no entanto, escolhemos complicar para, talvez, podermos controlar.

Essa árdua tarefa de falar de Deus, sobre Deus, acerca de Deus, que chamamos de Teologia, é um esforço meramente humano. Deus não faz Teologia! Arrisco a dizer, que muitas vezes ele nem gosta dela. Acho que é algo semelhante à situação em que alguém fala da gente e aquilo não corresponde à realidade. Assim, esse discurso, essa fala, desconexa, chega a irritar.

A tradição afirma que Deus, simplesmente, se mostra (o que chamamos de Revelação). Nós, quando olhamos para ele, então, falamos sobre o que vemos, com os nossos olhos, lentes e perspectivas limitadas. Se pudéssemos chamar de métodos, diríamos que tanto a Revelação quanto a Teologia tomam caminhos distintos. No entanto, a própria Revelação que por iniciativa divina passa a depender das bases comunicativas humanas para poder ser entendida, acaba se tornando complexa. Isso significa dizer que a coisa se complica por nossa causa, mesmo sendo Deus, em princípio, simples em sua ação de se mostrar a nós.

Quando a gente resolve estudar Teologia descobre como o assunto é complexo. Para falar de Deus nós dividimos, subdividimos, setorizamos e categorizamos a sua pessoa ou a sua revelação. Não que seja simples entender Deus, mas a gente complica mais do que deve. Se o que estou dizendo até aqui parece confuso (complexo), tentarei ser mais claro sobre o que estou tentando argumentar.

Vamos considerar a revelação que Deus fez de si mesmo por meio da Bíblia. A maneira que ele escolheu para se mostrar ali foi, fundamentalmente, com o uso de narrativas, histórias de experiências individuais e coletivas, da vivência daqueles que se relacionavam com ele. A maior parte das Escrituras não está sistematizada, sequer organizada em temas. O que vemos são histórias, sagas, novelas, poesias, sabedorias e profecias; tudo dentro do contexto de vida das pessoas ou do povo; tudo inserido em épocas e culturas específicas. Da leitura e observação destas experiências é que tentamos enxergar e entender Deus.

É claro que não podemos deixar de notar que em meio às experiências narradas também há algumas tentativas de sistematização das ideias sobre Deus. A primeira delas, talvez, seja a que foi feita pelos códigos legais. As tradições mosaica, deuteronomista e sacerdotal, por exemplo, procuraram encaixar a fé em Deus em um sistema legal que foi cada vez mais, ao longo do tempo, tomado como final. Nesse sentido, vejo as narrativas como simples e a sistematização dos códigos legais como complexa.
Algo semelhante se dá no Novo Testamento. Nos Evangelhos vemos as narrativas sobre a vida e mensagem de Jesus, ou até mesmo no livro de Atos que relata as experiências da igreja primitiva. Apenas com o apóstolo Paulo é que a gente encontra uma sistematização da mensagem e pessoa de Cristo.

O esforço em organizar as ideias ou sistematizá-las pode até ter uma boa intenção como, por exemplo, a transmissão pedagógica de uma mensagem ou tema. O problema, no entanto, surge quando esse sistema toma o lugar dos princípios originais ou da própria pessoa de Deus. Muitas vezes, por trás de sistemas existem intenções ideológicas ou egoístas de controle da fé das pessoas por meio da religião. Isso pode ser observado até mesmo nas experiências narradas na Bíblia. Por outro lado, Jesus se apresenta como uma pessoa simples. Ele nasce simples, em uma manjedoura, e morre simples, na cruz entre ladrões. Ele não ostenta uma coroa ou anel no dedo; não se veste com túnica, toga ou “terno”; não fala em uma linguagem diferente do povo. Jesus é tão simples que interage com crianças e anda com os párias da sociedade (cegos, cochos, leprosos, publicanos, prostitutas, etc.). Ele não tem uma casa, gabinete ou escritório, mas anda pelas ruas e vilarejos.

Sua Teologia, ou melhor dizendo, sua revelação de si mesmo e do Pai, descomplica as coisas. Foi assim com a mulher samaritana, com a questão do sábado, do jejum, do divórcio, do adultério, do perdão, do dízimo e tantos outros assuntos nos quais foi “testado” pelos teólogos da época. Percebo em Jesus a insistência em simplificar a vida e a percepção sobre Deus frente aos muitos processos e informações adicionadas à fé. A maior das simplificações é que ele faz com relação à Lei, sintetizando-a no princípio do amor.

Devo admitir que nem sempre é fácil viver a simplicidade. Parece que, na realidade, vivemos na tensão paradoxal entre o simples e o complexo. Confundimos adoração com culto, relação com Deus com religião e igreja-comunhão com igreja-instituição. Temos dificuldade, ainda hoje, em entendermos a simplicidade da Graça em contraponto a toda a estrutura religiosa que promove a salvação que está baseada em atos, fórmulas, intermediações e comportamentos condicionantes.

Estou convicto de que o papel da Teologia, portanto, não é dificultar ou tornar complexa a pessoa de Deus e a reconciliação com ele. Ao contrário, devemos estudar e nos aprofundar nas línguas originais, história, arqueologia e até mesmo nas sistematizações da Bíblia para simplificar as coisas, para tornar Deus mais próximo e mais claro a todos. É com o estudo que podemos superar os muitos paradoxos a que estamos submetidos, entre eles, a dinâmica de se viver entre o que é simples e as nossas complicações.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Nada sei


Nada sei, esse deveria ser o nome do blog, caso alguém não tivesse registrado antes. “Saber em parte” também funciona porque traduz aquilo que me vem à cabeça sobre o resultado da minha constante procura pelo saber.

Não sendo filósofo profissional me torno filósofo funcional pela constante curiosidade e tentativa de explicar as coisas. Algo que surge de uma ânsia quase infantil, do tipo colocar o dedo na tomada.

Do saber quero o prazer, inexplicável, de simplesmente descobrir e ir além. Conhecer e prosseguir conhecendo, porque hoje conheço em parte, mas um dia conhecerei por completo. Hoje, é saber em parte para na eternidade vir a saber no todo. Por isso, posso dizer que nada sei.

Há muito tempo me impressiona a figura de Sócrates e sua postura em relação à busca pelo conhecimento da verdade. Próximo de sua morte, condenado a beber veneno pelos magistrados de Atenas sob a acusação de corromper as mentes dos jovens aristocratas de então, Sócrates, como parte de sua defesa teria dito:

“Sei bem que não sou sábio, nem muito nem pouco: o que quer dizer, pois, afirmando que sou o mais sábio? Certo não mente, não é possível. E fiquei por muito tempo em dúvida sobre o que pudesse dizer; depois de grande fadiga resolvi buscar a significação do seguinte modo: Fui a um daqueles detentores da sabedoria, com a intenção de refutar, por meio dele, sem dúvida, o Oráculo, e, com tais provas, opor-lhe a minha resposta: Este é mais sábio que eu, enquanto tu dizias que eu sou o mais sábio. Examinando esse tal – não importa o nome, mas era, cidadãos atenienses, um dos políticos, este de quem eu experimentava essa impressão – e falando com ele, afigurou-se-me que esse homem parecia sábio a muitos outros e principalmente a si mesmo, mas não era sábio. Procurei demonstrar-lhe que ele parecia sábio sem o ser. Daí me veio o ódio dele e de muitos dos presentes. Então, pus-me a considerar, de mim para mim, que eu sou  mais sábio do que esse homem, pois que, ao contrário, nenhum de nós sabe nada de belo e bom, mas aquele homem acredita saber alguma coisa, sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber.”

Tendo sido considerado o mais sábio daquele tempo e sabendo que sabia muitas coisas, percebeu que, comparando-se aos outros que também eram considerados sábios, havia uma distinção entre ele e os demais. Aqueles não apenas eram sábios mas arrogantemente achavam que realmente o eram. Sócrates, no entanto, chegou à conclusão de que a sua busca pelo saber impunha também o conhecimento da limitação da apreensão deste saber diante do tamanho da realidade. Em sua finitude, e depois de muito saber, ele pôde expressar a humildade, alguns dirão modéstia irônica, de verdadeiramente não saber.

Curioso o fato de que Sócrates não deixou nada escrito. Mesmo o relato acima foi feito por Platão, um de seus discípulos, no texto Apologia. Ensinou e influenciou a muitos, incluindo a nossa sociedade ocidental contemporânea. Ele sequer ganhava para ensinar. Tendo herdado algum dinheiro, ensinava por prazer. Por estar livre das amarras e possíveis pressões de mandatários pôde exercer o ofício de mestre sem restrições. O que esperar de seus jovens discípulos que estavam sendo treinados a questionar na busca pelo conhecimento? Obviamente, por conta disso, foi acusado e, finalmente, pensaram os seus juízes, calado. Mas o saber libertador não se cala. Ele sempre rompe as fronteiras e estruturas porque procura expressar a verdade.

Aquele que não sabe, está pronto a dialogar e aprender. Aquele que sabe, não pode sequer conviver. Diálogo, por sinal, foi o método usado por Sócrates para ensinar. Melhor dizendo, o método socrático, que inclui a dialética, a maiêutica e outras técnicas, parte da premissa de que é necessário perguntar e comunitariamente tentar descobrir os caminhos da verdade.

O que hoje eu sei, é que nada sei. O que hoje eu sei, é que sei em parte. Por isso, me aventuro a continuar não sabendo.